Wilson da Costa Bueno*
O argumento circula por aí, livremente,, inclusive junto às autoridades do governo Lula, e é reproduzido pela mídia com grande desenvoltura: as aplicações da biotecnologia e, em particular, os transgênicos são temas complexos demais para serem debatidos com a sociedade. Este é um assunto que deve ficar restrito à comunidade dos especialistas. Isso significa: pesquisadores, cientistas, técnicos e, evidentemente, executivos das empresas de biotecnologia.
Em princípio, não deveríamos estranhar esta postura, já que ela tem sido comum ao longo do tempo, notadamente quando se contempla a versão oficial da história, escrita, invariavelmente, pelos vencedores.. Trata-se de uma visão elitista, mas, sobretudo, autoritária e não deveria encontrar guarida em sociedades e Governos que se propõem democráticos.
Toda tecnologia, toda descoberta ou qualquer outro elemento que integra o chamado progresso técnico, interessa, em tese, aos cidadãos , indistintamente, sejam eles profissionais graduados ou não, porque costuma afetar profundamente as suas vidas. A adoção de catraca eletrônica nos ônibus urbanos (uma tecnologia simples, se comparada às "maravilhas" prometidas pela clonagem, pela biotecnologia ou pela nanotecnologia) tem a capacidade de expulsar do mercado de trabalho centenas de milhares de brasileiros. A aceleração do processo de automação industrial pode, por seu turno, representar a dispensa de milhões de operários. A colheita da cana por máquinas possantes pode tirar o mísero ganha-pão de outros milhares de bóias-frias e assim por diante.
Ninguém fica imune à incorporação das tecnologias no mundo moderno e, por isso, é fundamental que todos participem do debate que cerca a produção e a comercialização das novidades em ciência e tecnologia. Não há, sob nenhuma hipótese, ciência ou tecnologia isentas, se considerarmos que elas se constituem em mercadorias importantes (e caras) no mundo moderno e que beneficiam empresas e Governos, ao mesmo tempo em que podem penalizar sociedades e cidadãos, individualmente.
Os transgênicos não fogem à regra. A sua introdução no mercado pode afetar, sob diversas formas, a sociedade. Ainda que os adeptos da biotecnologia digam o contrário, os transgênicos não podem ser aceitos tranquilamente, como se fossem desprezíveis os impactos que podem causar ao meio ambiente, à saúde e mesmo à economia das nações emergentes. A destruição da biodiversidade, a instauração de uma indiscutível dependência tecnológica (quem controla, afinal, o mercado de sementes transgênicas?), a repercussão no modo de produção das sociedades locais são questões importantes e que não devem ser discutidas apenas no âmbito dos Governos e das empresas.
A racionalidade empresarial costuma enxergar apenas os lucros a curto prazo, não se comprometendo, seja com o meio ambiente, seja com a situação de penúria dos excluídos da tecnologia. Ao exportador de soja e de suco de laranja interessa sobretudo produzir mais , ainda que à custa da redução de culturas alimentares fundamentais para a dieta do brasileiro. Ao industrial, atropelado pelo crescente custo Brasil, interessa, acima de tudo, aumentar a produtividade, ainda que ele cause a demissão de um enorme contingente de trabalhadores . O setor bancário brasileiro , o maior beneficiado com este modelo econômico, e que exibe, continuamente, lucros escandalosos, foi o que mais demitiu nos últimos 10 anos, apostando nas novas tecnologias.
Não é razoável deixar que a elite brasileira, seja ela intelectual - como os cientistas ou pesquisadores - ou empresarial, decida sozinha sobre questões tão importantes porque, invariavelmente, a sociedade costuma sair perdendo, como revela o desequilibrio social em nosso País, um dos maiores de todo o mundo. Deveríamos deixar que as questões relativas à nossa saúde fossem decididas apenas pelos pesquisadores e cientistas que trabalham para a indústria farmacêutica? Deveremos deixar as nossas opções alimentares no futuro sob a responsabilidade do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Monsanto?
No caso dos transgênicos, é ilustrativo perceber como muitos PHds, comprometidos com o seu projeto de pesquisa particular, vêem com naturalidade a adesão aos transgênicos, talvez porque, por esse viés, não consigam enxergar as repercussões de sua rápida introdução em setores que não sejam o estritamente científico. Não é por outro motivo que assinam, ostensivamente, colunas de jornais, como a existente no suplemento agrícola de O Estado de S. Paulo, patrocinada pelo CIB- Conselho de Informações sobre Biotecnologia, uma ong (?) constituída pelos grandes fabricantes de transgênicos.
A sociedade não pode abrir mão de seu direito de ser informada e de participar também do processo de tomada de decisões. A mídia, por sua vez, tem o dever de contribuir para que o debate seja plural , sem monopólios ou privilégios.
A saúde e a qualidade de vida, a preservação do meio ambiente, a manutenção dos empregos são problemas que nos dizem respeito e não devemos delegá-los a ninguém.
A decisão sobre investir (em), produzir ou comer transgênicos deve ser de todos nós. Essa é uma questão de princípio, de cidadania. Talvez seja difícil para alguns cientistas, para alguns Governos e, especialmente, para a Monsanto entender isso. Mas a gente vai continuar insistindo, gritando nos seus ouvidos, para que eles fiquem sabendo que não vamos baixar a guarda. A Ciência e Tecnologia, alguém já disse mais de uma vez, são importantes demais para serem comandadas por governos , empresas e cientistas. Os operários, a sociedade civil, a dona de casa e (por que não?) os pajés e as parteiras precisam ser ouvidos. Democracia é isso.
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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.